segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

notas sobre a trilogia Millenium


Atenção: alguns trechos desse texto podem ser considerados spoilers

1.    A trilogia Millenium do falecido escritor sueco Stieg Larsson entrou na minha vida por acaso. Confesso que há muito tempo não me interessava pela literatura de língua estrangeira contemporânea. Em meu último aniversário ganhei “Os homens que não amavam as mulheres” de presente dos queridos amigos, também professores Anderson Pires e Juliana Magaldi. Sendo assim, recebi o livro com uma espécie de aval. Iniciei a leitura, cuidadosa, tendo em vista que eu nem de longe era um iniciado no autor. Foi de grande valia para mim não ter nenhuma noção prévia do que se tratava e de toda mística que envolve a trilogia.
2.    Rapidamente a leitura fluiu. O ritmo de escrita de Larsson muito me agradou. A primeira vista assusta pelo volume e pela leitura densa. É como se o sueco condensasse palavras e informações aos borbotões em poucos centímetros quadrados. Aos poucos comecei a perceber que fazia parte do jogo descritivo e da constituição do cenário. Algo intrínseco a  trama.
3.    Não resisti e comprei os dois livros restantes. Resultado, cerca de 1800 páginas lidas em aproximadamente 45 dias.
Stieg Larsson

4.    A minha impressão quanto escritor e cientista social é que Larsson é um típico filho do welfare state sueco. Apesar da idade, deixa transparecer a todo o momento sua referência em instituições e padrões de civilização claramente construídas em décadas de social democracia sueca. Suas aflições e interesses mais claros aparecem sempre em contraste com os dilemas da própria Europa. Seja os tipos sociais produzidos por ela, as contradições da democracia, as rusgas do capitalismo.
5.    Larsson me parece separar muito bem seu lado jornalístico do romancista. E quando necessário, os funde em completa harmonia. Não há interferência, há complementaridade. E o mais importante, não esconde que as aflições que conduziram sua carreira profissional são dignas de sua literatura.
6.    Analisando por alto a trilogia, me parece que poderíamos definir da seguinte forma: em “Os homens que não amavam as mulheres” temos como pano de fundo um decrépito capitalismo familiar. Henrik Vanger, o velho industrial aposentado representa a fase áurea da industrialização e modernização do país. Ele traz sentimentos nobres que desencadeiam toda uma trama. O que não significa por sua vez que esteja livre ou isento de uma série de problemas que se estendem. Martin Vanger, mais jovem, arrojado, em tese a mudança, não passa da encarnação da faceta de um mal enorme. Em “A menina que brincava com fogo” o leitor se depara com os mais assustadores produtos da sociedade urbana. Gangues, crime organizado, e outros elementos que se associam a contravenção inclusive via estado. Chama atenção que dentro desse grupamento social, emergem os hackers que apesar de se apoiarem na ilegalidade, são descritos por Larsson como subversivos de intenções positivas. E em “A rainha do castelo de ar”, é a faceta do estado e suas instituições que tornam-se evidente. Como uma teia de relações políticas e policias conseguem se sustentar dentro da idéia de um regime democrático e constitucionalista. Neste terceiro livro fica clara a aflição permanente da possibilidade da ação policial usurpar os mais nobres direitos de cidadãos e cidadãs. Larsson evidencia como a saúde pública pode ser instrumento de controle social.
7.    Mas não há como negar que nos três livros, o problema principal é a violência contra a mulher, em todos os aspectos. Desde o mais comum assédio, até o estupro e assassinato. Esse é o fantasma de Larsson, que é exorcizado em sua pena. Lisbeth Salander é uma espécie de anti-heroína contemporânea que enfrenta o estado, a sociedade e o mundo econômico. É uma personagem feminista? Talvez. Podemos dizer que toda sua movimentação mais nobre é em defesa das mulheres, dentro de sua própria lógica claro. Se a personagem é feminista, não há como dizer o mesmo do autor. Existem lacunas que me fazem concordar com algumas críticas feitas. Salander é livre, forte e autônoma. Mas em boa parte dos livros, sua melhor faceta – aos olhos de um público comum - se dá na contraposição com personagens masculinos.  Michael Blomvist por sua vez é o mesmo, sempre, independente de quantas mulheres possa transar ao longo da saga. Mas nesse caso, arriscaria dizer que Larsson evoca uma certa malandragem de autor: deixa que as supostas qualidades de Blomvist se formem na retina do leitor, retina essa, viciada claro. O egocentrismo, a ambição e o sexismo desse personagem são sempre ofuscadas pelo fato de que a todo momento existem mulheres que justificam e tornam compreensível. Todas mulheres querem transar com ele pelo simples fato de que ele é melhor para as mulheres. Mas literatura é isso, e vale a pena por isso. Veias abertas a interpretações e contradições. Esse texto não é um julgamento político ou moral da trilogia.
8.    Por fim, a trilogia Millenium vale a pena ser lida. Recursos literários ricos estão presentes e o fôlego da leitura é recompensado por uma trama que em alguns momentos é vertiginosa.


Pós-notas
•    O filme de David Fincher me pareceu infinitamente superior ao sueco, mas longe de ser uma obra memorável do próprio diretor.
•    O que não significa que a versão cinematográfica feita na Suécia não mereça ser assistida. Vale a pena.
•    Destaque máximo de Fincher: fazer nos EUA um filme onde a protagonista efetiva é uma jovem tatuada, de visual pouco ortodoxo e vida sexual pouco convencional. Grande vitória.

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