terça-feira, 21 de outubro de 2014

Quem divide o Brasil? - reflexões sobre um certo cinismo eleitoral

 Parte de nossa elite* se atemoriza pelo simples fato de que hoje em dia no país o voto ganhou algum contorno de classe** e já não é possível controlar de forma automática como no passado os desejos e sentimentos de seus subordinados.



Debret
É minimamente curioso que às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais uma parte da sociedade, incluindo "formadores de opinião" insistam na tese de que o Partido dos Trabalhadores e determinados setores da esquerda "dividem" o país entre "ricos e pobres", "brancos e negros", "mulheres e homens", "heterossexuais e "homossexuais".

Tenho evitado grandes debates nesse momento, principalmente nas redes. Priorizei nesses últimos momentos de campanha a conversa rosto a rosto com pessoas nas ruas das cidades que frequento por achar mais proveitoso e prazeroso.
Mas infelizmente o grau de equívoco desse argumento me impeliu a tratar disso novamente, usando o blog para expôr algumas considerações.

Parto do princípio de que vivemos numa sociedade construída em pilares de desigualdade social, econômica, racial e de gênero. Desde as bases escravistas, passando pelo nosso modelo de estado nacional ao longo do século XIX e as transformações que vivemos ao longo da república e as idas e vindas que fomos colocados através dos momentos ditatoriais que enfrentamos. Sendo assim, para mim, é uma questão de princípio partir da premissa de que essa sociedade é historicamente desigual, e que parte dessa desigualdade não se fez por "providência divina" e sim como estratégia de manutenção de privilégios de determinados setores. Se você acha isso uma bobagem, recomendo abandonar a leitura desse texto e voltar para a tranquilidade da ética da cordialidade, onde os problemas são escondidos, abafados, amenizados e transformados em doçuras. Agora se você acredita que transformações sociais acontecem quando dedos são colocados em feridas históricas, sigamos em frente.


Historicamente temos dificuldades de mexer nesses "vespeiros" que são os privilégios, seja lá que tamanho eles tem. Para uma grande parcela da população parece ser mais agradável que o "segredo" permaneça adormecido como forma de se livrar do incômodo da mudança, ou em outros casos da perda de privilégios que são meramente simbólicos. Políticas que oferecem aos setores historicamente excluídos algum tipo de horizonte ou ascensão tem sido duramente rechaçadas. Ainda que não tenhamos as mais profundas transformações necessárias, rompemos a inércia com a afirmação de um modelo de consumo interno e valorização do salário mínimo, políticas de reparação como as cotas, mecanismos de combate a desigualdade como programas amplos de transferência de renda, a ampliação do acesso ao ensino superior e técnico federal. Foram tantos anos de "silêncio" que uma mexida razoável no tabuleiro foi capaz de gerar efeitos virtuosos nos dados sobre o país e ao mesmo tempo uma certa ira daqueles que enxergam nisso tudo a perda de seus privilégios.

Consumo (pasmem!) pode sim ser parte da inserção cidadã de uma parcela na sociedade brasileira. Esse nem de longe é o problema central, e não deveria ser o centro da crítica daqueles que sempre consumiram (e em algum momento já se endividaram). Uma das mais cruéis formas que uma parte de nossa elite tem de se dirigir aos mais pobres é querer determinar, controlar e direcionar seus desejos com base no que lhes é mais conveniente. É a velha estratégia de "chutar a escada".***

O debate sobre a economia brasileira é apenas um capítulo desse dilema. Embora os oposicionistas tentem tratar o debate como se fosse puramente técnico, mais do que nunca está claro que ele é político, no melhor sentido da palavra. As políticas anticíclicas do atual governo foram tomadas justamente para defender essas pequenas grandes conquistas que vem tentando reduzir o abismo social. Ou alguém tem dúvida de quem as medidas de austeridade tão defendidas pelos Armínios da vida fortalecem os privilégios do mercado e daqueles que se encontram em situação menos vulnerável? 

Ora, não há decisão política que não implique em prioridades. Para todos os lados. 

Políticas públicas expõem as desigualdades e diferenças  sociais. Elas não as criam como alguns insistem em dizer. Não são os arranjos institucionais que criam as disparidades numa sociedade que hoje já percebe o tamanho do abismo oculto por décadas. Parte de nossa elite se atemoriza pelo simples fato de que hoje em dia no país o voto ganhou algum contorno de classe e já não é possível controlar de forma automática como no passado os desejos e sentimentos de seus subordinados. Eis o grande lance de tudo que acontece hoje no Brasil. Diante disso, essa parcela que perde seu poder de influência (políticos, empresários, comunicadores) denunciam que alguém quer dividir o país que eles construíram dividido até outro dia, negando acesso ao mercado de trabalho formal, a educação, ao consumo, a moradia, a vagas nas universidades e tantos outros fatores que até então eram só deles.

O "nós" contra "eles" é apenas uma expressão retórica - goste ou não - para expôr que há sim uma disputa de posições antagônicas no país. E por mais que alguns elementos relevantes possam nos unir, como o respeito e apreço pelo processo democrático por exemplo, não há vergonha ou problema em assumirmos que temos visões de mundo completamente diferentes e que estamos em disputa na arena democrática que tanto sonhamos em ter. Civilidade e respeito são (ou deveriam ser) valores inerentes a qualquer posição política, o que inclui o bom debate, pautado pelo argumento e embasamento. Mas nada disso deve ser utilizado como desculpa para pasteurizar a discussão política. É o que parece ser a vontade daqueles que tem perdido o controle sobre o povão.

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* Uso a expressão elite de forma genérica para me referir a grupos que detém historicamente maior poder econômico, acumulando maior capital social e cultural e exercendo até então maior influência sobre a chamada "opinião pública". 
** Embora esse contorno seja claro, temos elementos visíveis de que a polarização merece ser observada com todo cuidado. Basta vermos que em cada região a característica do voto se desenha de uma forma. Em certas regiões isso ainda está muito embolada se observarmos as pesquisas de intenção de voto. Em outras, esse quadro de caráter de "classe" do voto é mais nítido. Essa nota se justifica exclusivamente para demonstrar que a divisão temida pelos de cima não é tão sistemática como gostam de propagar.
***A expressão "chutar a escada" foi empregada pelo economista Ha-Joon Chang para exemplificar como países desenvolvidos adotaram estratégias de crescimento pautadas no protecionismo e na intervenção do estado na economia para décadas depois sugerir que países em desenvolvimento adotassem as estratégias opostas para desenvolver-se. Acredito que de certa maneira parte de nossa elite adota a postura de "chutar a escada" em relação aos mais pobres. Não aceitam que eles desfrutem das mesmas possibilidades que eles tiveram antes de atingir o topo.

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