sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Samba: a redenção de um povo

Tia Ciata
Redenção é uma palavra cara a nossa cultura. Somos um povo forjado em lutas e dissabores, inseridos em uma história de tristezas e alegrias multifacetadas, marcado pela inconclusa construção de um "ser povo". Trazemos duas marcas ímpares em nosso seio: a luta pela modernidade civilizatória da independência e as marcas da escravidão africana de quase quatro séculos. Em nossa cultura cristã, a redenção vem pelo sofrimento do peso da cruz que se carrega, do calvário a ser superado em nome da eternidade. Em nossa ancestralidade africana, a redenção vem da harmonia com a poesia simbiótica dos orixás que representam a verdadeira natureza, que atingida, significa vida plena, marcada ao ritmo do tambor.

O samba é o exemplo maior de redenção de nosso povo. Não apenas pela marca revolucionária da mudança de um paradigma musical, mas também pela aglutinação de um modo de viver, um ethos, uma visão de mundo.


Hoje, me lembrei da frase de Nei Lopes: "escola de samba não tem quadra, quadra é coisa de basquete. Escola de Samba tem terreiro". Essa lembrança ativou um pontinho de minhas reflexões diárias. Diante o avanço neopentecostal radical neste país, tento não imaginar ou sofrer com o que seria deste país sem a cultura dos povos de terreiro.

O terreiro, onde nasceu e se perpetuou o samba, onde eram praticados os ritos do Candomblé, a mais antiga religião do planeta, foi um dos mais importantes espaços de solidariedade e estabelecimento de laços fraternos entre os marginalizados de uma época. Nos terreiros, recebia-se o alimento do corpo quando este faltava, garantia-se o alimento da alma que a acalentava, aprendia-se um ofício, tinha-se a família acolhedora, resgantando tradicionais laços do matriarcado da mãe África. Sem o terreiro, o genocídio do povo preto brasileiro teria sido efetivado, e o projeto de embranquecimento da população brasileira teria provavelmente acontecido.

No terreiro de Tia Ciata, onde se comia sururu, galinhada, bebia-se cachaça e todos se amavam, nasceu o samba. Mestre Donga, com sua viola, seus ranchos e maxixes, gravava no início do século aquilo que seria considerado o primeiro samba da história. Formava-a santíssima trindade do samba com os parceiros Pixinguinha e João da Baiana.

Donga, Pixinguinha e João da Baiana

Nos Estados Unidos nascia o jazz, na América Central, a habanera, raiz comum entre o samba e o tango, e o vodun proliferava-se pelas Ilhas caribenha. Somado ao esforço hercúleo de Mestre Pastinha, sucedido pelo mestre Bimba em relação a Capoeira, podemos dizer que viveu-se um período de transformação dos paradigmas da cultura negra nas Américas.

O samba redimiu um povo ao permitir o resgate de sua auto-estima e o fortalecimento de seus laços sociais e políticos. Resistiu às tentativas de disciplinarização de governos autoritários, suportou as dores do mercado. Mas foi e é, a afirmação do sentimento de amor, trazido no peito por milhões de apaixonados pela vida ou por alguém, da louvação a noite, aos prazeres terrenos, da bebida, da comida, dos dias de sol, das madrugadas boêmias, da fidelidade e da traição, do grito de vida ou de desespero. da tradução de um sentimento de tristeza, lamento, que só se curva a esperança.

De minha parte, o batuque parecia me chamar desde cedo no congá de minha avó. No encantamento pelos pretos velhos e caboclos, o fascínio da oralidade e da canção que evoca espiritualidade. Em casa, os discos dos meus pais alimentaram desde cedo esse carinho e sentimento de pertencimento a este mundo. No bairro de minha criação, o Mariano Procópio, as histórias de João Cardoso e o famoso carnaval de 1941, quando a Unidos de Mariano sagrou-se o bloco vencedor, a boêmia dos bares, o amor das pessoas pelo carnaval de rua.

Por fim, a poesia sempre presente me permitiu mergulhar de cabeça na experiência do samba ao me forjar letrista de sambas, na parceria com queridos amigos, que me realizaram um sonho antigo.
O samba é o elo de entendimento, é a força de ruptura, é quem me faz escolher um lado na história do povo brasileiro. É quem permite a dissolução de barreiras e o estabelecimento de uma aliança.

O dia nacional do samba é apenas um pretexto para fazermos o que fazemos o ano todo. Cantar e louvar essa história que é infinita, e parte edificante de um povo.

2 comentários:

  1. Por isso que eu digo

    "O samba mora em mim,
    embora eu não seja sambista,
    pois levo a cadência
    dos bambas marcada no peito."

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  2. Belíssimo texto, Tiago!

    Tua sensibilidade e tua habilidade com as palavras me fascinam!

    Abraços

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