quarta-feira, 12 de junho de 2013

Às vezes é preciso “desestatizar” o coração – mas sem perder a "razão"

“Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade” (Guimarães Rosa – GS:V)


Foto: Mídia NINJA
Se um famoso filme difundiu a frase “todo coração é uma célula revolucionária”, sinto me a vontade para dizer que, obstante o lirismo da frase, creio que o coração muitas vezes é uma “célula de conforto”.  Em matéria de política, muitas vezes, intuitivamente tendemos a resistir quando o tema é uma reflexão mais abrangente. Mas isso está longe de ser “natural”, é histórico, claro.

O meu coração guarda grande apreço pela figura de Fernando Haddad. Foi um bom ministro da educação, fez uma bela campanha em busca da prefeitura de São Paulo, e já prefeito, nos primeiros meses se comportou de forma digna e coerente em muitos momentos.

Historicamente, meu coração guarda grande apreço pelos movimentos sociais e pelas lutas populares brasileiras. Elas são parte da minha vida e história.

O movimento que ecoa nas ruas de São Paulo tem gerado um debate acirrado e muitas vezes, a meu ver equivocado, entre  diversos corações de São Paulo e do Brasil.


De um lado, alguns ativistas elegeram todos governantes e todas as formas de governos como inimigos. Fator natural, tendo em vista a crescente crise da representação e os dilemas que nossa democracia enfrente ao longo das últimas décadas.

Do outro lado, alguns assumiram a defesa intransigente desses governos e seus chefes, traçando até mesmo as mais incríveis teorias da conspiração para desabonar o movimento que vem das ruas contra o aumento da tarifa do transporte público paulista.

Dois dilemas aparecem muito claros nesse debate: de um lado, os governos ainda têm nítida dificuldade de lidar com as transformações que a sociedade civil vem vivendo nesses tempos de sociedade de rede. Não temos mais grupos de interesse estanques na esfera pública. Cada vez mais os movimentos se entrelaçam e multiplicam seus interesses nos mais diversos formatos. A pluralidade e complexidade da sociedade brasileira refletem cada vez mais na forma de reivindicar e nas próprias reivindicações.  O tradicional trabalhador (casa-trabalho-trabalho-casa) dá lugar cada vez mais ao profissional de múltiplas movimentações pela urbe, assumindo inúmeras funções na rede de produção e de criação (casa+trabalho+rua+sociabilidade moderna).

Mal comparando, o cidadão em 2013 é uma equação de terceiro grau, em contraposição ao cidadão do século passado, que era uma espécie de equação simples. E não mais é simples compreender, incluir e atender essa “multidão” na história.

As redes de informação e formação são cada vez mais amplas. O ator social mudou profundamente. Mas os governos mudam de forma muito tímida, quando mudam.

Sendo assim, o desnível entre mudanças efetivas do poder público e a “práxis” do cidadão real geram uma espécie de diálogo dificultoso, onde demandas e soluções se enfrentam e muitas vezes encontram grandes dificuldades de solução.

Por outro lado, a exacerbação do ativismo, puro e simples, leva também ao diálogo surdo. A pujança da militância é algo extremamente valoroso e precioso, mas não pode se compreender de forma destacada da realidade das esferas de governo.  O eterno risco do “há governo, sou contra”.

Não se trata da defesa de um “conformismo qualificado” mas sim de uma tática mais acertada de enfrentamento, onde as estratégias de “rua” se fundam nas estratégias “institucionais” de ação e reação.  O movimento é dialético: ocupar as ruas sempre, mas ocupar as instituições permanentemente.  Ampliar e qualificar as pautas de reivindicação mas fazer o mesmo com os canais de diálogo.

Erra quem transforma a questão de  São Paulo em um problema único e exclusivo do PT. Erra também quem acha que não é um problema do PT. Na prática os movimentos da rua são parte da crescente insatisfação universal de uma população nascida em novos tempos e permeada por outros dilemas. Mas podemos dizer que o voluntarismo excessivo, que ganha reflexo muitas vezes na falta de organização e criatividade, é algo urgente e importante que o novo ativismo brasileiro precisa refletir.


Por fim, o que vem das ruas é bom. “Desestatizar” o coração é importante nesse momento e pode ser uma bela lição para a democracia mas também para a governança. Mas as questões são amplas e infindáveis. Novamente citando Rosa: “vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”.

3 comentários:

  1. eu não falaria nunca tão bem nem tão bonito, mas eu diria exatamente o mesmo.

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  2. Entendo que a necessidade exista. O problema é que a cólera, a indignação quando atinge determinado grau, se torna impossível o controle através de outro tipo de ação. Quando se atinge o nível de instinto coletivo de defesa, o diálogo é algo impossível. Evitar chegar a esse nível é o desafio. O canal de diálogo e negociação só funcionará até determinado nível. É o preço que se paga quando a representação popular e os movimentos sociais não são ouvidos com atenção e suas reivindicações analisadas com seriedade. Passou disso, o pavio é aceso. Os governos devem repensar o seu modo de atender as reivindicações do povo. Ficar utilizando a repressão policial agrega metal e amola a lâmina. Em um determinado momento, se não há reforma no modelo de negociações e principalmente, de cumprir os compromissos, a lâmina se torna tão grande e tão afiada, que não haverá violência desferida contra o povo que irá pará-lo. Pois serão muitos. A revolta por conta da exploração só vem aumentando no Brasil.

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  3. Interessante. Expressa mais ou menos a minha também, com a grande ressalva de que o PT é a terceira coisa que me vem a mente, e ressalta-lo dessa forma é querer tirar o seu da reta, o que me propõe atenção para uma opinião já partidária em espírito - o ainda devoto.
    Contudo gostei da contemporaneidade de como as coisas estão se movendo, pensei que iria deixar a conclusão em aberto. Mas ampliou para em macro, o que é muito imaturo ainda, já que o movimento também o é.

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